quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

O complexo caso do Dr. Roger Abdelmassih

Soraya Fleischer, antropóloga escreve:


"Em uma carta dirigida à Folha de São Paulo, o leitor Dênis Calazans Loma acertou: muitas vezes, a mídia firma julgamentos e sentença em casos polêmicos. Concordo com ele, é preciso parcimônia e ponderação. Não devemos prejulgar o famoso médico de reprodução assistida, Roger Abdelmassih, acusado por dezenas de mulheres pelo crime de assédio sexual. Por isso, não vou me ater aos relatos da mídia que, claro, pode cometer equívocos e induzir conclusões precipitadas. Vou me ater à fonte primária, como chamamos na pesquisa social, isto é, ao próprio médico.
No dia 28 de janeiro, a Folha lhe conferiu um espaço precioso, geralmente dedicado às “Tendências e Debates” discutidos de forma qualificada e argumentativa. Ali, a Folha publicou uma carta, um depoimento, um apelo de inocência do referido médico. Sua grande estranheza, diante das acusações, é “o porquê de tudo isso”. Abdelmassih define as denúncias como “esvaziadas de sentido, acusações perversas, subjetivas, sem materialidade”.
A primeira idéia utilizada para sustentar sua inocência é de que é “o representante mais conhecido no Brasil de uma especialidade médica que não consegue, ainda, 100% de resultados”. Segundo ele, a falibilidade da técnica gera, portanto, frustração entre os pacientes que não conseguem gerar filhos.
O segundo argumento para se defender é de que “toda a notoriedade que tenho, e que parece incomodar a tantos, foi conquistada unicamente em consequência do meu trabalho e dos resultados obtidos”. Parece concluir que trabalhar duro, gerar resultados, construir uma famosa e exitosa linha de pesquisa e serviços em reprodução assistida seriam objetos de “inveja” e “despeito”.
Por fim, o terceiro argumento é de que “conquistei cerca de 8.000 vitórias, quase 8.000 crianças que deram sentido à vida de casais, que realizaram o desejo de formar famílias”. Parecendo um semi-deus vitorioso, foi sua tecnologia redentora que possibilitou que casais conseguissem procriar. Para ele, a idéia de “família” só se concretizou, de fato, com a vinda do filho gerado nesta clínica.
Assim, considerando-se um médico “conhecido”, “notório” e magnânimo por “realizar o desejo das famílias”, ele supõe uma evidente inocência e relega as denúncias à esfera do “ressentimento”, “vingança”, “retaliação”. Mas as denúncias não se dirigem à sua competência profissional, não se questiona que método foi utilizado, que remédio foi administrado. Abdelmassih não é somente um médico. Como qualquer outro, é também uma pessoa. Estupro e assédio sexual são praticados por pessoas, de qualquer posição social, de qualquer origem profissional. Não basta Abdelmassih se escudar em seu sucesso e técnica profissionais. Esta estratégia não invalida as denúncias.
É interessante que, em nenhum momento de sua carta, o médico use a palavra “mulher”. Ele parece não lhes considerar como as interlocutoras em questão nesse caso. E são elas que se perceberam, em algum momento dentro daquela luxuosa clínica, desrespeitadas, abusadas, violadas, objetificadas. Esta queixa é tão legítima como qualquer outra, mas, sabemos, é tradicionalmente mais silenciada. Quando uma mulher é estuprada na rua, ainda ouvimos frases como “Ah, por que ela foi usar justo aquela mini-saia?”. Neste caso, não é diferente. O médico usa o argumento de que as mulheres estão “frustradas” pelo fato de não conseguirem engravidar e por isso lhe acusam. O pleito se desloca da gravidade de um assalto sexual para a condenação de condutas “naturalmente” identificadas no universo feminino: a “mulher decente” não usa roupas curtas; a mulher que não consegue se tornar mãe vira uma “frustrada”. De vítimas, elas passam a rés. E mais, quando finalmente arrolam coragem para denunciar o mal feitor, estas denúncias são tidas, como Abdelmassih definiu em sua carta, como “subjetivas”, algo relegado ao mundo pessoal e íntimo; “esvaziadas de sentido” e “sem materialidade” porque, afinal, muitas vezes não restam “provas” (esperma, arranhões, hematomas, dilacerações vaginais etc.); e, “perversas” como se, por denunciarem, estas mulheres estivessem se desviando do papel historicamente delas esperado (inabalavelmente “bondosas”, “compreensivas” e “passivas”).
Médicos, como qualquer outro profissional, também são pessoas. E estas denúncias se direcionam à sua conduta como pessoa e não como médico. Estas mulheres estão desafiando a imagem de Abdelmassih como uma pessoa moralmente conveniente e decente. Ele deveria vir a público defender sua atitude costumeira dentro do consultório, o tipo de relação que ele preza entre médico e pacientes, as normas e protocolos de conduta que instaurou em sua clínica, os treinamentos e qualificações que ele e sua equipe fizeram para estimular uma atmosfera ética no ambiente de trabalho. Neste momento, é preciso, também um exercício de relativismo: Que comportamentos do médico talvez tenham sido mal compreendidos? Será que “simpatia, carinho e acolhimento” foram interpretados dentro de uma outra lógica? O que uma paciente e seu esposo esperam de uma clínica de reprodução – realmente vão em busca de “simpatia, carinho e acolhimento”? Se eu estivesse deitada numa maca, esperando retornar de uma sedação, de que forma eu gostaria de ser abordada por um médico ou uma médica?
São estas as informações que ajudarão os leitores e usuários de serviços de saúde a entenderem o lado de Abdelmassih nessa história. É preciso descer do pedestal no qual sua tecnologia o colocou e enfrentar essas denúncias como pessoa, na justiça comum, no julgamento moral que todos fazemos diariamente uns dos outros. Não é retribuindo mais “ódio” às mulheres atendidas e polarizando de forma maniqueísta o caso que ele o resolverá.

publicado em Cfemea (www.cfemea.org.br) - fevereiro de 2009

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